quinta-feira, 16 de abril de 2009

ESTUDO DO PROBLEMA DA EVASÃO NO CURSINHO PRÉ-VESTIBULAR ESPERANÇA POPULAR DA RESTINGA



Amanda Ritter Stoffel1

Débora Schardosin Ferreira2

Diego Souza Marques3

Geraldo Magela Campani Figueiredo4

Helena Bonetto5

Ludmar Matos6

Palmo Celestino Ribeiro Franco7

Rafael Arenhaldt (orientador)8

Thiago Ingrassia Pereira (orientador)9

Yara Paulina Cerpa Aranda10



Resumo

Os Cursos Pré-Vestibulares Populares (PVPs) são uma realidade no cenário educacional de nosso país, pois em praticamente todo o território nacional há registro da organização e desenvolvimento de cursos preparatórios ao vestibular que, além disso, trabalham a partir de princípios de educação popular, buscando formar sujeitos críticos. Nesse cenário, o Programa Conexões de Saberes/UFRGS definiu como um de seus territórios o PVP Esperança Popular, no bairro Restinga em Porto Alegre/RS, com o objetivo de fomentar a democratização do acesso ao ensino superior. Neste artigo procuramos discutir um problema que nos desafiou em nosso trabalho no ano de 2006: a evasão dos alunos em nosso cursinho. Assim, buscamos compreender as causas e motivações desse problema. Para a execução dessa proposta, realizamos pesquisa bibliográfica sobre o tema e entrevistas semi-estruturadas com os alunos evadidos. Os resultados apontam que a evasão está ligada à fragilidade do vínculo dos alunos com o cursinho, seja por suas condições materiais, pela falta de uma “cultura universitária” ou pelo caráter embrionário da experiência no bairro e na Associação de Moradores.

Palavras-Chaves: Pré-Vestibular Popular; Vestibular; Evasão.





Os vestibulares não estão baseados no conteúdo que o aluno recebe da rede pública. Os vestibulares estão baseados no que os cursinhos caros fornecem para quem pode pagar. Esse vestibular é desonesto, ele não pode se basear no que os cursinhos caros oferecem, tem que se basear em outros saberes.

(Frei David)



Introdução



Nas últimas duas décadas o crescimento e o desenvolvimento imposto a qualquer custo pela Nova Ordem Mundial têm alterado significativamente o quadro educacional brasileiro. Na década de 1990 particularmente, os programas voltados à educação tiveram maior preocupação em responder a dados quantitativos impostos pela ONU/Banco Mundial do que desenvolver propostas efetivas e mais adequadas à realidade brasileira. Como resultado de uma série de políticas equivocadas, além da imensa quantidade de diplomas do ensino médio distribuídos sem a devida qualidade de ensino, poucas ações foram realizadas em prol da melhoria na qualidade e democratização do ensino.

Não é por mera coincidência ou por simples acaso que na década de 1990 há uma explosão na demanda por ensino superior. A partir deste momento passou-se a questionar enfaticamente a estrutura elitista e racista do ensino superior brasileiro que é fruto de um processo que historicamente vem negando esses espaços às camadas populares e grupos sociais marginalizados.

Como resposta a essa demanda frente à ausência de diversidade nas nossas universidades e levando em consideração os problemas e as questões que se apresentam como desafios para a construção de uma sociedade mais justa, já que a atual nega direitos e oportunidades para parcelas significativas da população brasileira (o que acontece desde a colonização e atinge preferencialmente alguns grupos sociais como os negros e índios), organizaram-se e continuam organizando-se vários movimentos sociais (NASCIMENTO, 1999).

Nesse sentido, os Cursos Pré-Vestibulares Populares (PVPs) vêm se constituindo em importantes espaços de reflexão, organização política e mobilização social das classes populares na luta pelas políticas universais em educação e, especificamente, do acesso ao ensino superior. Este artigo se insere em um esforço de reflexão acerca dos dilemas e possibilidades que se apresentaram, no ano de 2006, na execução do Pré-Vestibular Esperança Popular, no bairro Restinga em Porto Alegre/RS, um dos territórios de atuação do Programa Conexões de Saberes/UFRGS. Compreendemos que o Esperança Popular se insere neste contexto de luta pela democratização do acesso ao ensino superior e, como fenômeno historicamente situado, sofre o impacto do contexto atual de redefinições da esfera pública e de aumento da exclusão social.

Pontualmente, estaremos discutindo o problema da evasão de nossos alunos ao longo das atividades do cursinho, pois, pela sua relevância em termos quantitativos, nos sentimos desafiados a encontrar suas causas e buscar alternativas para a sua superação, bem como a refletir sobre suas conseqüências para o desenvolvimento do nosso trabalho.

Dessa forma, depois de contextualizarmos os PVPs, destacando suas características, limites e potencialidades, focamos nosso estudo no PVP Esperança Popular, apresentando seu contorno social (Bairro Restinga). Em seguida, discutimos a questão conceitual da evasão, buscando implicá-la na realidade dos PVPs. Por fim, analisamos as entrevistas realizadas com os alunos evadidos do cursinho com o objetivo de, a partir da escuta dos entrevistados, tecermos algumas considerações que nos ajudem a qualificar nossa prática.


1. O que são PVPs


Os estudos de cunho teórico acerca de possíveis definições sobre o fenômeno dos PVPs são ainda muito incipientes e são formulados, via de regra, a partir das vivências de seus colaboradores. Nesse sentido, mais do que definirmos o que seja um cursinho popular, o que contrariaria a essência desse movimento que se produz em seu fazer cotidiano, tentaremos apresentar alguns aspectos que nos ajudam a entender o que não devem (deveriam) ser os PVPs e, por conseqüência, o que efetivamente podem ser.

Assim, um cursinho pré-vestibular de caráter popular não pode estar economicamente inacessível às classes populares, ou seja, não deve operar dentro de uma lógica capitalista que vise o lucro. Esse aspecto, embora fundamental, não é o único capaz de explicar um PVP. Dessa forma,


além do aspecto financeiro que é fundamental para o público de classe popular, os PVPs procuram operar em uma dimensão crítica de educação, não se limitando à revisão dos conteúdos para as provas do vestibular, por mais que não possam abrir mão disso, avançando em busca de dotar o ato pedagógico de sentido dentro da realidade concreta do seu público (PEREIRA, 2007, p. 55).


Por isso, os PVPs se constituem como espaços de socialização e de troca de experiências que ultrapassam a mera preparação ao vestibular (SANGER, 2003). Nesse sentido, é comum observarmos nos programas curriculares dos cursinhos populares disciplinas como a de Cultura e Cidadania, ratificando o argumento de Nascimento (2006a, p. 1): “os cursos pré-vestibulares populares devem ser mais que mero treinamento, devem ser espaços de estudos, mas também de análises das relações sociais, de organização de alternativas e produção de propostas de democratização da educação e da pedagogia”. Em vista disso, Monteiro (1996) ratifica o desafio dos PVPs:


a proposta metodológica, ideológica e filosófica é de não apenas repassar os conteúdos programáticos do segundo grau, mas ampliar a discussão de uma proposta de transformação da sociedade [...]. Nesse sentido a educação para a cidadania é, também, um desafio e objetivo político dos “prés” (p. 58).


Depois dessas discussões iniciais, podemos encaminhar algumas definições possíveis para o que sejam os PVPs. Para Nascimento (2006b, p. 1),


esses cursos pré-vestibulares, que denominamos de Cursos Pré-Vestibulares Populares, são iniciativas educacionais de entidades diversas, de trabalhadores em educação e de grupos comunitários, destinados a uma parcela da população que é colocada em situação de desvantagem pela situação de pobreza que lhe é imposta.


Nessa mesma linha, temos também que


os cursinhos pré-vestibulares populares não visam interesses mercadológicos e possuem entre sua grade de disciplinas ênfase nas discussões sobre as relações raciais, sobre as contradições e conflitos sociais, sobre democracia, educação e outros temas. Esses cursinhos preparam estudantes que estão excluídos do sistema para melhor concorrerem pelas vagas nos concursos vestibulares (ARANDA et alli, 2006).


     Dessa forma, os PVPs possuem definições genéricas e que espelham o seu caráter informal, sendo esta uma característica que marca o trabalho da maior parte dessas experiências. A partir da constatação de uma realidade objetiva de que pobres, negros, indígenas e estudantes de escolas públicas em geral apresentam muitas dificuldades para passar pelo vestibular e chegar à universidade, principalmente nas públicas, grupos de pessoas que geralmente viveram essas dificuldades, mas que, mesmo assim conseguiram entrar na universidade, se organizam e montam um espaço destinado para a revisão dos conteúdos das provas do vestibular.

Desse modo, notamos que os PVPs procuram se pautar pelos aspectos que trabalham com noções de cidadania juntamente com a preparação/revisão conteudista para as provas do concurso vestibular. Esse “duplo movimento” (PEREIRA, 2007) enseja um desafio epistemológico, ou seja, como trabalhar o conhecimento no cursinho popular?

Partindo de uma concepção de aprendizagem em detrimento da simples memorização (adestramento), os PVPs buscam trabalhar o diferente, o novo, em contraponto à pedagogia tradicional, esta assentada em aulas expositivas e sem sentido dentro da realidade do aluno. Por isso, o conhecimento deve ser trabalhado nos PVPs a partir do estabelecimento de relações humanas em uma perspectiva horizontal, ou seja, que privilegia a troca de vivências entre os envolvidos nos projetos (alunos, professores, organizadores, comunidade), tendo em vista as trajetórias de cada ente envolvido. Os próprios espaços informais nas comunidades ou até mesmo dentro das escolas onde funcionam os PVPs servem para o tensionamento das hierarquias comumente observadas na relação pedagógica tradicional.

Enfim, é fato que diversas experiências alternativas ao mercado dos cursinhos privados têm surgido na última década e mobilizado considerável número de pessoas e logística para o seu funcionamento. Segundo dados do EDUCAFRO, “estima-se que, no final de 2004, existiam mais de 1.000 cursos pré-vestibulares populares no Brasil, mobilizando de 50.000 a 100.000 pessoas” (ARANDA et alli, 2006, p. 117). Só no estado do Rio de Janeiro, mais de uma centena de cursos populares estão em atuação (NASCIMENTO, 1999), e no Rio Grande do Sul são também dezenas de iniciativas, sendo que, em Porto Alegre, treze PVPs atuaram durante o ano de 2006 (PEREIRA, 2007). No desenvolvimento dessas experiências, vamos encontrar alguns desafios que são peculiares ao seu formato e objetivo.


1.2 Problemas comuns aos cursinhos populares


A construção, viabilidade e manutenção de iniciativas sociais e educacionais alternativas como os cursinhos pré-vestibulares populares requerem um permanente esforço de seus agentes sociais. Inúmeros são os problemas enfrentados por tais iniciativas, tanto na sua concepção e construção, bem como no seu cotidiano. Neste item procuramos apresentar alguns dos problemas comuns enfrentados pelos PVPs, dos quais destacamos a partir do trabalho de Santos (2005):


  1. Heterogeneidade dos alunos: esses cursos atendem um público totalmente heterogêneo nos seguintes aspectos: alunos que tiveram trajetórias escolares diferentes, alguns oriundos de boas escolas públicas e outros de escolas com nível inferior, todos ocupando um mesmo espaço de aprendizagem com objetivos singulares. Nesse sentido, devemos levar em conta também o fato de essas pessoas estarem em tempos de estudo diferentes, já que enquanto algumas recém terminaram seu ensino médio, outras estão há muito tempo afastadas dos estudos.

  2. Diversidade dos formatos de construção dos vestibulares: que o vestibular é uma ferramenta de seleção que prima pelo adestramento do aluno todos sabemos. Além disso, cada universidade aplica provas totalmente diferentes, o que prejudica a preparação do aluno, pois ele pode estar muito bem preparado para um tipo de prova e não para outro. Isso surge como um desafio para os PVPs em sua organização curricular.

  3. Sustentabilidade e recursos financeiros e materiais: a maioria desses cursos é mantida com recursos advindos dos próprios alunos que, na maioria dos casos, pagam uma taxa para cobrir as despesas, o que nem sempre é suficiente para adquirir o material necessário. Quanto à infra-estrutura, esses cursos utilizam salas de escolas, igrejas, universidades e muitas vezes associações comunitárias, que são espaços normalmente diminutos e com escassez de itens básicos como um quadro-negro e banheiros. Como o curso precisa funcionar, acaba tendo que utilizar salas não apropriadas para um bom funcionamento das aulas.

  4. Rotatividade de professores: uma característica marcante dos cursinhos pré-vestibulares populares é a rotatividade de professores dentro de uma mesma disciplina, já que os mesmos são universitários ou professores voluntários que não podem dispor de uma carga horária elevada para a atividade. Isso reflete um aumento na dificuldade de sincronizar os conteúdos vistos em sala de aula, exigindo um grande entrosamento entre os professores de uma mesma disciplina. Como na maioria das vezes os professores não se encontram regularmente e não freqüentam os mesmos espaços, o diálogo pode tornar-se escasso ou insuficiente para garantir um bom andamento das disciplinas. Aos alunos, tal problema pode gerar repetição de certos conteúdos em detrimento de outros que acabam não sendo devidamente abordados. A mudança de enfoque ou a maneira de dar aula de cada professor pode prejudicar os estudos e gerar confusão no entendimento dos alunos, que nos PVPs são majoritariamente provenientes de um ensino público deficitário que, muitas vezes, não oferece uma boa formação básica.


     Dentre os problemas enfrentados pelos cursinhos pré-vestibulares populares talvez o que mais tem causado preocupações e questionamentos no que tange à função social de tais iniciativas é a evasão dos alunos. Dentro destas preocupações com a evasão incluímos a desmotivação de educadores e alunos, de seus agentes sociais e instituições envolvidas. Contudo, antes de discutirmos a questão conceitual da evasão, vamos situar a experiência do PVP Esperança Popular, pois as próprias causas da evasão podem estar associadas às vivências e ao contexto social que influencia e é influenciado pelo cursinho.


2. Situando o Pré-Vestibular Esperança Popular


2.1 O bairro Restinga


     O bairro Restinga localizado a 23 quilômetros do centro de Porto Alegre, possui uma população de mais de 50 mil habitantes, segundo o Censo de 2000 (IBGE). Porém esse dado pode ser questionado, já que, devido a grande área de ocupação na Restinga, existe uma população “que não consta no mapa” e não entra nas estatísticas, pois relatos da comunidade local dão conta que são mais de 100 mil pessoas que moram no Bairro. Segundo o Observatório de Porto Alegre1 a população do bairro Restinga é de 53.764 habitantes, representando 3,95% da população do município. Com área de 38,56 km², representa 8,10% da área do município, sendo sua densidade demográfica de 1.394,29 habitantes por km². A taxa de analfabetismo é de 6,0% e o rendimento médio dos responsáveis por domicílio é de 3,6 salários mínimos. De acordo com o Censo de 2000 (IBGE) a Restinga é o sexto bairro mais pobre da capital. Surgiu em meados da década de 1960, a partir de uma política de “limpeza” do centro, chamada “Remover para promover”. Os moradores de vilas na região central foram despachados para a zona sul de Porto Alegre, numa área sem nenhuma infra-estrutura.



2.2 O Curso Pré-Vestibular Esperança Popular


     É nesse ambiente que se desenvolve a presente ação de extensão do Curso Pré-Vestibular Esperança Popular, inserida junto ao Programa Conexões de Saberes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Tal ação é constituída em parceria com a Associação de Moradores Núcleo Esperança I. O cursinho surgiu da antiga demanda da comunidade e da Associação, visto a dificuldade de acesso a cursos pré-vestibulares da região central e à precariedade do ensino público. As aulas são ministradas na própria Associação, iniciativa que propicia um estreitamento da relação Comunidade/Associação, fazendo do curso popular um local de espaço de luta pela democratização pelo acesso à universidade. Pela característica do programa Conexões de Saberes/UFRGS em ouvir a comunidade e conviver com ela, a entrada do bairro Restinga como um dos territórios do programa ocorreu devido às demandas existentes na comunidade e também pelo objetivo de potencializar a conexão entre o saber popular e o científico.

     A ação de extensão acontece desde março de 2006, tendo como objetivo geral construir formas de democratização do acesso à universidade pública, integrando todos os envolvidos - professores voluntários, professores bolsistas do Programa Conexões de Saberes/UFRGS, integrantes da Associação de moradores, alunos e demais pessoas da comunidade – na construção e desenvolvimento do Cursinho Esperança Popular.

Entre os objetivos específicos do PVP Esperança Popular, podemos destacar: a) refletir o que é educação popular, problematizando a lógica da educação tradicional; b) construir uma relação efetiva e contínua entre comunidade-associação-universidade; c) discutir sobre o acesso e inserção na universidade; d) afirmar o dever dos estudantes da universidade pública em retornar à sociedade o conhecimento obtido.

     Dessa maneira, verificamos que é necessária uma reflexão sobre como a educação popular entra na discussão acadêmica. Também, pensamos como estas representações populares se edificam no meio acadêmico e qual a real representatividade dos saberes populares na universidade. Concomitantemente, buscamos criar vínculos acadêmicos permanentes com a comunidade da Restinga, reduzindo o distanciamento dos universos culturais envolvidos. Esta contextualização nos ajuda a procurar compreender as causas e as conseqüências de um dos problemas mais significativos que afetam os PVPs, e, em especial, a experiência iniciada em 2006 na Restinga: a evasão dos alunos


3. Evasão


     Entre os problemas enfrentados pelos pré-vestibulares populares está a evasão que pode ser definida, sinteticamente, da seguinte maneira: o aluno que deixa de freqüentar o curso e não retorna mais. A evasão é um fenômeno que, segundo a literatura consultada, tendo em vista sempre o contexto do ensino formal, acontece por fatores internos e externos a escola.

     Nos fatores internos podemos observar que as dificuldades de permanência de um aluno podem estar relacionadas com a estrutura da escola, incluindo a falta de materiais didáticos alternativos, tais como computadores, aparelho de som e de imagem que são, via de regra, precários na rede pública em nosso país. Além disso, ocorre uma tensão entre as práticas pedagógicas e a realidade do aluno, pois geralmente o ensino é teórico-abstrato, e por isso o aluno não consegue visualizar onde pode utilizar o conhecimento ensinado a ele, caracterizando a desvinculação entre teoria e ação.

     Por outro lado, a avaliação é um dos fatores que também contribui com o fenômeno da evasão. Para Ferreira (1983), quando essa prática tem o caráter de simplesmente descobrir falhas e acertos se mostra inadequada, negligenciando, segundo Cordal (2000), as características que podem ser próprias de cada aluno. O processo avaliativo pode provocar a repetência que, de acordo com Torres (2000), gera nos alunos uma necessidade de “começar de novo”, o que criaria um sentimento de desperdício de tempo e de recursos.

     Por sua vez, o professor criaria expectativas em relação aos seus alunos que ao longo dos meses não são correspondidas, podendo influenciar no modo em que serão ministradas as aulas. Nesse sentido, podemos ver então que, para Bourdieu (apud QUEIROZ, 2002, p.5), “os professores partem da hipótese de que existe, entre o ensinante e o ensinado, uma comunidade lingüística e de cultura, uma cumplicidade prévia nos valores, o que só ocorre quando o sistema escolar está lidando com seus próprios herdeiros”. Este descaso com as diferenças de cada aluno pode ser visualizado na forma de avaliação do professor que acaba, muitas vezes, por excluir aquele aluno que não alcança resultados satisfatórios.

     No que tange aos fatores externos à escola, o primeiro ponto a ser destacado é a relação com o grau de escolaridade da família, principalmente da mãe. Torres (2000) argumenta que famílias com baixa escolaridade tendem a ver a escola como sinônimo de “disciplina”, que exclui indivíduos incapacitados para se enquadrar nesses aspectos (lógica meritocrática).  Assim, essas famílias tendem a ver a desistência dos jovens como sinal de uma suposta “alta qualidade escolar”, entendendo que seus filhos não possuem “capacidade” para acompanhar o processo escolar. Alguns especialistas da área educacional, contudo, tendem a associar o mesmo fenômeno à baixa qualidade do sistema escolar, deslocando a “culpa” do indivíduo para o sistema como um todo.

     Segundo o Programa de Estudos Conjuntos de Integração Econômica da América Latina - ECIEL - (apud QUEIROZ, 2002, p. 3) "o fator mais importante para compreender os determinantes do rendimento escolar é a família do aluno, sendo que, quanto mais elevado o nível da escolaridade da mãe, mais tempo a criança permanece na escola e maior é o seu rendimento”, ratificando o discutido por Torres (2000).

Outros aspectos que são atribuídos a causas externas são: o trabalho doméstico infantil, como o cuidado com irmãos mais novos para os pais poderem trabalhar, a baixa renda familiar e as condições estruturais dos bairros periféricos. Assim, o fracasso escolar nas camadas populares, segundo ARROYO (apud QUEIROZ, 2002, p.3), liga-se a


essa escola das classes trabalhadoras que vem fracassando em todo lugar. Não são as diferenças de clima ou de região que marcam as grandes diferenças entre escola possível ou impossível, mas as diferenças de classe. As políticas oficiais tentam ocultar esse caráter de classe no fracasso escolar, apresentando os problemas e as soluções com políticas regionais e locais.


     Dessa forma, a questão de classe é importante para a qualidade da formação do estudante, influenciando suas possibilidades de ascensão escolar. Nesse sentido, o estudo desenvolvido por Meksenas (1991) sobre a escola brasileira, discute a realidade dos alunos dos cursos noturnos, apontando que a evasão escolar ocorre em virtude da necessidade deles trabalharem para sustento próprio e da família, combinando o trabalho e o estudo em uma jornada desgastante.

     Diante da exposição destes fatores externos e internos podemos começar a nos questionar sobre sua validade no contexto dos PVPs, levando em consideração que o espaço de aprendizagem é diferenciado por sua proposta de ensino, pois, sabemos, que na escola básica (foco da lietratura consultada) a freqüência é obrigatória para a aprovação, ao passo que no cursinho popular o mesmo não se observa. O que leva o aluno a desistir do cursinho popular? Quais os fatores que contribuem para sua desistência? Estas perguntas infelizmente ainda não foram abordadas pela literatura existente, mas são perguntas que estão presentes no nosso cotidiano e na tentativa de começar a respondê-las optamos por perguntá-las aos alunos evadidos do Pré-Vestibular Esperança Popular.


4. Do percurso metodológico


     Por sermos um grupo2 heterogêneo de pesquisa, optamos por um método de trabalho no qual foi possível compartilhar de todas as áreas do conhecimento, por meio de discussões acerca dos cursinhos pré-vestibulares populares e educação popular, lançando mão de algumas leituras de textos que tratam do assunto, para nos situarmos no tema. Apesar da experiência prática de todos como professores, precisávamos de uma formação teórica e metodológica para realizar a escrita do artigo. É importante lembrar que os integrantes do grupo estão diretamente envolvidos com o Curso Pré-Vestibular Esperança Popular, pois em sua maioria são professores e alguns são coordenadores de território junto ao Programa Conexões de Saberes/UFRGS.

Depois de algumas reuniões, foi acordado que trataríamos da evasão dos alunos como principal problema de pesquisa. Esse é um assunto que engloba grande parte dos PVPs por ser um problema comum e esta reflexão poderia ser útil a todos eles. Definido o problema, era chegada a hora de delimitar o universo de pesquisa. Inicialmente foi estipulado pelo grupo que para compreender o fenômeno da evasão era necessário entrevistar todas as partes envolvidas, ou seja, alunos evadidos, professores e membros da associação. Contudo, a ida a campo impôs uma nova ordenação e foi necessário optar apenas por entrevistar os alunos evadidos.

Antes da ida a campo, o grupo realizou uma pesquisa exploratória acerca da produção a respeito de cursos PVPs e do fenômeno de evasão, sendo escrito o corpo teórico com a participação de todos os membros do grupo de pesquisa e, posteriormente, foi construído o instrumento de pesquisa, que resultou num roteiro de entrevista com quatorze questões. Do total de 35 evadidos somente foi possível chegar a oito entrevistas, por uma série de dificuldades que uma ida a campo comumente coloca: não localização dos ex-alunos, colisão de horários e o fator tempo de conclusão do trabalho.

Feitas as entrevistas, todas as questões foram dividas entre os pesquisadores para análise e, posteriormente, sistematizadas para tornar possível uma análise orgânica entre a sistematização das entrevistas (perspectiva captada por cada pesquisador) e a base teórica discutida.

O roteiro de entrevista procurou possibilitar que o entrevistado, de certa forma, avaliasse o PVP em questão para que assim pudéssemos apreender as prováveis causas da evasão. Para isso, foram elaboradas questões nas quais o entrevistado pudesse, por exemplo, apontar os aspectos positivos e negativos do PVPs. A seguir, realizaremos a análise das entrevistas.


5. Da análise das entrevistas


Para a análise das entrevistas, estabelecemos o perfil dos alunos entrevistados que pode ser visualizado no quadro abaixo:


PERFIL DOS ENTREVISTADOS



Nota metodológica: Um fato a ser destacado refere-se à situação do aluno Carlos Eduardo de Souza Rodrigues, já que no percurso do trabalho de pesquisa descobrimos que ele manteve freqüência em somente duas disciplinas (Matemática e Língua Portuguesa) até o final do curso, fato que originou sua exclusão para fins da análise que procedemos.


     Temos, a partir de um levantamento feito por meio das fichas de inscrição do cursinho, o número total de 35 alunos que iniciaram em maio, sendo que destes, 85,71% evadiram (cinco alunos terminaram o curso em dezembro). Os alunos entrevistados são, em sua maioria, negros e mulheres, possuindo idades variadas, sendo que duas pessoas têm mais de 40 anos e terminaram o ensino médio por meio de supletivo ou EJA, no restante, observamos que a faixa de idade se mantém entre 17 e 25 anos, estando eles com o nível médio concluído ou em fase de conclusão (alunos do 3° ano). Além disso, para freqüentar o cursinho, o aluno deveria estudar ou ter estudado exclusivamente em escola pública.

Para criar um caminho consistente em busca das prováveis causas da evasão, as entrevistas realizadas procuraram traçar um panorama que (re)criasse a percepção que o próprio entrevistado tinha a respeito da realidade na qual estava inserido. Para isso foi fundamental saber se os sujeitos envolvidos tinham ciência e qual o alcance dessa compreensão a respeito do caráter do cursinho que freqüentaram, ainda que por um curto período. Assim, vamos analisar as respostas dos entrevistados considerando seu perfil e a base teórica trabalhada anteriormente.

Em relação ao desempenho escolar, os alunos entrevistados, em sua maioria, demonstraram satisfação com o seu desempenho. O que chama a atenção é que esta satisfação foi associada à aprovação, notas boas e em dois casos ter apenas uma reprovação no ensino médio. Isso reflete a lógica hegemônica do ensino médio público do nosso país que prima pela aprovação em massa de alunos. Assim, esses estudantes apresentam dificuldades para disputar uma vaga em alguma instituição pública de ensino superior, pois estas exigem um conhecimento que está muito além do que esses alunos adquiriram na vida escolar.

Interessante observar que nenhum dos alunos entrevistados citou a palavra conhecimento quando falaram sobre seu desempenho escolar, mas quando tiveram que explicar o porquê de terem procurado o Esperança Popular apareceu a questão da busca por mais conhecimento. Neste ponto fica claro que, para os alunos, o cursinho preencheria lacunas deixadas pelas suas escolas onde a maioria deles acreditou que teve um bom desempenho.

Os alunos entrevistados colocam como objetivo o acesso à universidade, visando esse caminho no intuito de uma perspectiva de melhorar sua realidade, melhoria de seus empregos e uma estabilidade financeira. Visam, enfim, reconhecimento e prestígio social (valor simbólico) por estudar na universidade.

Na tentativa de verificar se a falta de tempo e a disposição para o estudo fora do horário de aula influenciaram na evasão, foi perguntado aos entrevistados se eles conseguiam estudar nesse tempo fora do cursinho. Dos sete entrevistados, três declararam que trabalhavam durante o período em que participaram do cursinho e quatro declararam que não. Apenas um relatou não estudar fora do horário de aula, mesmo tendo tempo para isso. A falta de tempo pareceu ser a questão principal para a pouca disposição e o escasso estudo fora da sala de aula.

Os ex-alunos entrevistados destacaram como pontos positivos no Pré-Vestibular Esperança a dedicação dos professores ao lecionar, a proximidade entre aluno e professor facilitando a resolução de dúvidas e o aprendizado, as amizades adquiridas, a localização próxima da residência dos alunos e a facilidade na questão financeira, já que a taxa cobrada era muito inferior, se comparada com cursos pré-vestibulares não populares (mercantis). O cursinho ganha, dessa forma, um caráter social devido a sua baixa mensalidade, tornando-se acessível para aqueles que precisam, pois as mensalidades não visam lucros, mas, apenas a manutenção do próprio curso e do espaço utilizado.

Também foi indagado quais os pontos negativos do cursinho e, dos sete entrevistados, cinco apontaram a falta de infra-estrutura como principal deficiência do PVP Esperança. Como o cursinho está localizado em uma Associação de Moradores (que não é um espaço escolar tradicional), os entrevistados apontaram problemas de iluminação, bancos desconfortáveis e até mesmo o frio no inverno.

Foi perguntado,além disso, aos entrevistados qual a maior dificuldade de se manter no cursinho. Não houve unanimidade, poderíamos tentar classificar em três as dificuldades apresentadas: a violência do bairro, a estrutura do local de ensino e a não priorização do cursinho. A violência do bairro foi o motivo apresentado por duas entrevistadas. Para uma delas este foi o motivo central para sua evasão do cursinho. Apesar da estrutura do local de ensino ter sido mencionada por duas entrevistadas, não houve menção de este ter sido o motivo de evasão. Outro fator apontado foi o que denominamos de “não priorização do cursinho”, que é um aspecto recorrentemente observado por quem tem trabalhado com cursinhos populares. Isso vai ao encontro do perfil de aluno que procura o cursinho, que se trata de um público que pode evadir por dificuldades econômicas (que o levam a abandonar o curso por um emprego), falta de uma cultura de universidade, baixa auto-estima, etc.

Uma pergunta que a primeira vista pode parecer desnecessária traz informações interessantes. Foi perguntado aos entrevistados se no fim das contas haviam realizado vestibular. Dos sete entrevistados, simplesmente cinco não realizaram vestibular e dois passaram por um processo seletivo em universidades privadas. Esse dado chama a atenção porque demonstra que o objetivo que levou essas pessoas a procurarem o curso no início do ano não se manteve até o período das provas.

Dos entrevistados, três pessoas declaram que perceberam um caráter de movimento social nas atividades do PVP Esperança Popular, sendo que uma fazia parte da associação e da organização do cursinho e outra era um dos educandos do ano de 2006. A situação social em que o PVP Esparança Popular estava inserida, mostra que as pessoas que procuraram o cursinho estavam em busca de uma melhor qualidade de vida do ponto de vista financeiro. Esse fator esta ligado ao problema da evasão, pelo fato de que quatro entrevistados afirmaram ter abandonado as aulas pelo fato de terem privilegiado seus empregos e cursos profissionalizantes, sendo que uma declarou que como estava no 3° ano do ensino médio já tinha o domínio dos conteúdos que estavam sendo apresentados. Ou seja, mostra a contradição que existe em uma sociedade que vê a educação como trampolim para o mercado ao mesmo tempo em que estruturalmente impossibilita determinadas camadas sociais de terem esta oportunidade.


Considerações Finais


Dessa forma, o fenômeno da evasão é recorrente nos PVPs e pode possuir muitas origens desde fatores internos do curso, tais como: o corpo docente ser formado em sua maioria por professores que ainda não estão formados, pela falta de estrutura dos espaços onde são realizadas as aulas, pela falta de material didático específico para o vestibular, pelos conteúdos que não fazem parte do cotidiano dos alunos. E por fatores externos: como a falta de tempo para complementar os estudos por parte dos alunos, pela falta de dinheiro para pagar a taxa cobrada para prestar as provas do vestibular, o desemprego do aluno e seus familiares ou o aluno que arrumou um emprego novo e até mesmo pela violência do bairro.

Portanto, o que transpareceu ao longo do nosso trabalho de campo e da reflexão teórica que empreendemos sugere que a universidade apresenta-se para os alunos evadidos de nosso cursinho como um instrumento para melhoria de suas condições de vida. Contudo, os problemas pertinentes a sua condição social que, adicionados aos problemas estruturais do PVP Esperança, acabam influenciando no seu processo de desligamento do curso.

Soma-se a isso a fragilidade observada na relação entre o aluno e o cursinho, já que esse não tem a “cultura universitária”, ou seja, em suas relações cotidianas, os estudos em nível superior aparecem como algo distante. A própia experiência do PVP Esperança Popular é pioneira no bairro, pois até então nenhuma experiência similar havia sido constituída na Restinga. Por isso, mesmo diante do grande desafio de se trabalhar com pré-vestibular e com todos os limites apresentados em nosso trabalho, isso propiciou subsídios para uma melhor construção do cursinho neste ano, tentando minimizar os problemas que enfrentamos na implantação do projeto em 2006.

Por fim, pensando em possíveis encaminhamentos, no sentido de se estabelecer uma relação mais duradoura com a comunidade que procura o espaço do cursinho, a experiência tem nos apontado a importância do engajamento dos alunos na construção e gestão do cursinho, pois uma das metas do nosso trabalho é a participação política dos alunos. Nesse sentido, o fortalecimento da Associação de Moradores e a melhoria de seu espaço reservado para as aulas, juntamente com a adoção de material didático, são movimentos que estamos realizando atualmente na esperança de consolidação do Esperança Popular.


Referências


ARANDA, Y. P. C. et alli. Lógica Meritocrática e Práticas Pedagógicas na Universidade: qual é a função do mérito nas nossas universidades? In: SILVA, J. S.; BARBOSA, J. L.; SOUSA, A. I. (Orgs.). Práticas Pedagógicas e a Lógica Meritória na Universidade. Rio de Janeiro: UFRJ, Pró-Reitoria de Extensão, 2006.


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1 Fonte consultada: . Acesso: 27 jul 2007.

2 Destacamos a presença e a colaboração do Prof. Dr. Jaime Zitkoski (FACED/UFRGS) em alguns encontros de nosso grupo de pesquisa.

1 Estudante do Curso de Ciências Biológicas e bolsista do Programa Conexões de Saberes – UFRGS.

2 Estudante do Curso de Geografia e bolsista do Programa Conexões de Saberes – UFRGS.

3 Estudante do Curso de História e bolsista do Programa Conexões de Saberes – UFRGS.

4 Estudante do Curso de Engenharia Elétrica e bolsista do Programa Conexões de Saberes – UFRGS.

5 Estudante do Curso de Ciências Sociais e bolsista do Programa Conexões de Saberes – UFRGS.

6 Estudante do Curso de Física e bolsista do Programa Conexões de Saberes – UFRGS.

7 Estudante do Curso de Engenharia Elétrica e bolsista do Programa Conexões de Saberes – UFRGS.

8 Doutorando em Educação e integrante da Equipe de Coordenação do Programa Conexões de Saberes – UFRGS.

9 Mestre em Educação, Professor da FACED/UFRGS e integrante da Equipe de Coordenação do Programa Conexões de Saberes – UFRGS.

10 Estudante do Curso de Ciências Sociais e bolsista do Programa Conexões de Saberes – UFRGS.


A Construção de Educadores no Cursinho Popular: experiências e reflexões

A Construção de Educadores no Cursinho Popular: experiências e reflexões


Aline de Abreu Andreoli1

Caroline Gonçalves Chaves2

Diego Souza Marques3

Grasiela Martini4

Juliana da Silva Arnort5

Ludmar Guedes Matos6

Thiago Goulart Prietto7

Thiago Ingrassia Pereira8


Resumo: A partir das experiências concretas de in(ter)venção pedagógica no Curso Pré-Vestibular Esperança Popular Restinga, este artigo busca pensar a construção dos bolsistas do Programa Conexões de Saberes – UFRGS como educadores, retratando suas angústias, medos e conquistas neste início de caminhada no campo da educação e, em especial, no trabalho pela democratização do acesso ao ensino superior público. A sala de aula e seus contornos (espaciais e culturais) ao lado de leituras orientadas servem de esteio para o trabalho empírico e de reflexão, originário de uma práxis aberta ao desafio e carregada de esperança. Esta experiência didática e de pesquisa nos possibilita atestar o inacabamento dos sujeitos frente ao processo educativo, renovando nosso compromisso com os princípios da educação popular que tensionam as injustas assimetrias de nossa sociedade.

Palavras-Chave: Pré-Vestibular Popular; Ensino e Pesquisa; Educação Popular.






Fé na vida, fé no homem, fé no que virá

Nós podemos tudo, nós podemos mais

Vamos lá fazer o que será

Gonzaguinha


Ao vir à terra, todo homem tem direito a

que se o eduque, e depois, em troca, o dever de contribuir à educação dos demais

José Martí





Introdução: entre a prática e a teoria


Podemos perguntar a um aluno (jovem ou não) que esteja terminando o ensino médio quais são seus planos para o futuro. A resposta, muitas vezes, pode vir com um movimento de ombros acompanhado de uma expressão que mostra um ar de incerteza: “Sei lá... Até gostaria de cursar uma faculdade, mas isto não é para mim, é só para quem pode”. Observamos que o ensino superior é uma realidade que faz parte da vida de outros, daqueles que têm as condições – materiais e afetivas - exigidas pela sociedade capitalista.

Na realidade educacional brasileira esta concepção de acesso ao ensino superior se mostra comum, pois ainda poucas pessoas conseguem o ingresso em uma universidade9 e dessas um número muito inferior tem acesso à universidade pública, uma vez que o ensino gratuito e de qualidade promove uma enorme concorrência por uma vaga em seus quadros. Porém,


a diminuição das taxas de reprovação, a ampliação das formas alternativas de seriação, tal como o ensino supletivo e o sistema modular, associada à ampliação de vagas no ensino superior provocaram o aumento crescente dos candidatos ao ingresso na universidade. A criação, por seu turno, de experiências pedagógicas complementares ao sistema formal de ensino, tais como os pré-vestibulares comunitários, gera novas dinâmicas educacionais, na qual a escola é um dos elementos a mais (SILVA, 2003, p. 160).



Estas “novas dinâmicas educacionais”, onde se incluem os Pré-Vestibulares Populares, procuram tensionar a estrutura elitista do sistema educacional brasileiro, principalmente a partir da constatação de alguns déficits no ensino básico público. Assim, os cursinhos populares visam democratizar o acesso ao ensino superior que parece tão distante de uma grande parte da população brasileira, principalmente a mais pobre, negra e indígena (LEIPNITZ; PEREIRA, 2008).

Nesse contexto o Programa Conexões de Saberes destaca-se, em nível nacional, pelo fomento a iniciativas que propiciem a permanência qualificada de estudantes de origem popular nas universidades federais, atuando em pesquisa e extensão. Os cursinhos populares se configuram como uma das políticas mais incisivas no âmbito deste programa, congregando bolsistas e professores universitários com as comunidades parceiras.

Diante disso, torna-se relevante a formação dos jovens professores10 que assumem a tarefa de lecionar no cursinho popular, sendo eles estudantes de licenciatura ou não, mas ambos com a garra de futuros professores11. Os alunos-professores-bolsistas encharcam-se na prática de sala de aula e na condução da estrutura do pré-vestibular. Assim, a prática docente desafia os bolsistas, impõe medos e dificuldades, ao mesmo tempo em que abre possibilidades de uma formação profissional de qualidade.

Com base nesta discussão, buscaremos ter mais elementos para entender algumas questões com as quais nos deparamos: como ocorre a construção dos professores-alunos-bolsistas no/do cursinho pré-vestibular no bairro Restinga da cidade de Porto Alegre? Em outras palavras: o que está implicado na nossa formação de professores no cursinho da Restinga? Quais os pressupostos que orientam a nossa prática docente neste território?

Para tentar responder a estas questões, definimos dois eixos básicos e interdependentes de atuação em nosso grupo de trabalho: formação de professores e fundamentos de pesquisa social. Com isso, trabalhamos de forma integrada dois grandes desafios que se colocam aos jovens universitários, associando ensino e pesquisa. Nosso principal objetivo é nos formarmos como professores-pesquisadores, aquele professor que não apenas ensina e transmite seu conhecimento, mas aquele que reflete consigo e com o educando os resultados de suas ações didático-pedagógicas.

O professor-pesquisador traz uma característica que o diferencia dos demais colegas. Ele transforma sua docência em atividade intelectual cuja empiria (aquilo que ele observa) é fornecida por sua atividade de ensino, pela atividade de aprendizagem, pela rebeldia de alguns alunos, pela incapacidade de aprendizagem de outros devido à falta de condições cognitivas prévias, em conteúdos ou em estrutura, de condições didáticas apropriadas, ou, ainda, de carência de condições materiais (BECKER, 2007, p. 20).


Dessa forma, nosso trabalho de campo encontra a sala de aula como espaço de possibilidades, entendida como espaço privilegiado do trabalho do professor e local onde afloram dúvidas e incertezas que acompanham os primeiros passos na carreira docente. Assim, o professor-pesquisador se depara com algumas questões: que métodos usará em função do objetivo que tem em vista (BECKER, 2007) e “como um professor pode transformar sua prática sem transformar sua teoria?” (BECKER, 1998, p.47)

Tentaremos responder essas e outras questões a partir de nossa experiência concreta, lançando um olhar sensível para os limites e possibilidades que o trabalho no cursinho popular nos coloca. Para isso, o artigo está divido em três tópicos, abordando, respectivamente, o perfil dos alunos e do bairro onde o cursinho ocorre, a influência das concepções da educação popular no trabalho docente e a análise de nossas experiências em sala de aula.



A distância entre a realidade e o vestibular: ou sobre a necessidade de conhecermos com quem e onde trabalhamos


Embora uma pessoa não seja um educador até a medula, tem de conhecer não apenas as matérias que ensina, mas também a própria criança ou adolescente ao qual se dirige: em síntese, o aluno como ser vivo que reage, transforma-se e desenvolve-se mentalmente. (Jean Piaget)


Para a realização do planejamento das aulas torna-se relevante a leitura da realidade na qual vamos atuar, pois o espaço comunicativo provido de significado é essencial para o melhor aproveitamento das aulas. No nosso caso, em especial, estamos construindo uma experiência nova no bairro, pois a Restinga12, até a criação do Curso Pré-Vestibular Esperança Popular iniciada em 2006, não possuía um espaço com tais características. Além disso, o Esperança Popular começou em parceria com uma associação comunitária do bairro e teve muitos altos e baixos na construção desta idéia no local (BONETTO et all, 2007), fazendo com que, ao final de 2007, ocorresse a transferência das suas atividades para uma escola pública municipal.

Assim, no ano de 2008 tivemos uma expressiva procura pelas 25 vagas ofertadas (de acordo com o espaço da sala cedida no turno da noite na escola), com 120 candidatos inscritos. Pelos critérios de seleção13, 100 candidatos foram para o sorteio público das vagas, realizado no refeitório da escola. Ressaltamos, também, que quatro ex-alunos de 2007 procuraram novamente o cursinho, tendo vaga, segundo critérios discutidos entre o grupo de professores, assegurada.

Nesse sentido, para a realização da leitura do nosso espaço de trabalho, discutiremos brevemente alguns aspectos relacionados ao perfil dos alunos do Esperança Popular. O grupo de alunos é bastante heterogêneo, formado por estudantes com históricos diferentes, apresentando diversos níveis de aprendizado durante o ensino médio. Enquanto uns recém saíram ou ainda estão cursando o ensino médio, outros já o fizeram há muito tempo.

Ao contrário do observado em outros cursinhos, principalmente nos cursinhos mercadológicos ou, nas palavras do Frei David, caros, a turma do Esperança Popular apresenta muitas mulheres e, entre elas, uma parcela expressiva de negras. Também, a média de idade é um pouco mais elevada do que a comumente observada em cursinhos.

Uma parcela significativa dos alunos tem algum trabalho durante o dia como fonte de renda, tornando o acompanhamento do curso uma tarefa muito difícil, pois requer ainda mais dedicação do que alguém que pode apenas estudar para o vestibular.

É interessante salientar que, embora aparentemente não haja, no bairro, uma história de supervalorização do estudo, enquanto suporte para ascensão social, tendo em vista o fato de que há, entre a população adulta, um baixo nível médio de escolarização, ocorre um forte incentivo para a continuidade dos estudos, ou seja, muitas mães (inclusive solteiras) buscam proporcionar aos seus filhos uma melhor condição escolar, para que estes possam seguir trajetórias distintas das suas, que via de regra, foi ou ainda são bastantes sofridas.

Houve, em anos anteriores, depoimentos de alunas acima de 50 anos que diziam terem voltado a estudar para incentivar seus filhos, para que estes arrumassem um emprego descente e não se envolvessem nas atividades ilícitas, que geralmente são oferecidas como alternativa às mentes “desocupadas” (como o tráfico de drogas, que infelizmente é bastante presente no bairro, inclusive sendo realizado até mesmo por crianças e adolescentes).

Tanto os candidatos à vaga no cursinho (cerca de 100 pessoas), como os alunos efetivamente matriculados (28) fazem parte de uma minoria, não só do bairro, bem como da sociedade. Pertencem, em sua maioria, ao grupo de pessoas que não tiveram em casa o exemplo de que “o estudo vale a pena”, pois seus pais, geralmente, não permaneceram muito tempo na escola e/ou tiveram de trabalhar muito cedo para ajudar no sustento de sua família. Ainda assim, nossos alunos, apesar de trabalharem o dia todo e de terem já, em muitos casos, famílias para sustentar, estão investindo seu disputado tempo (que seria para o marido (esposa) ou para os filhos) para dedicar-se a um cursinho popular que tem o objetivo de “prepará-los” para uma ingrata e injusta prova de vestibular que influenciará seus futuros: se passarem, terão, talvez, maiores possibilidades na vida e uma perspectiva de ascensão social; se não, continuarão a ser simples “restingueiros”14 sem futuro (conforme o pensamento que observamos entre os alunos).

Enfim, o grupo de alunos tem em comum a vontade de mudar de vida por meio do ensino universitário, acreditando que conseguirão melhores condições de vida com um curso superior, ou ainda, simplesmente querem dar continuidade aos estudos, fato observado entre aqueles que estão saindo do ensino médio.

Diante dessa caracterização do grupo de alunos, orientamos a construção de estratégias de ensino, procurando desenvolver os objetivos de um cursinho popular; entre eles, destacamos o esforço de preenchimento das lacunas deixadas por grande parte do sistema público de ensino que é, sabemos, falho em preparar os seus alunos para a realização de um concorrido vestibular.

Esta contradição entre a exigência do vestibular e as possibilidades de preparação dos segmentos populares, é expressa no fato de que os alunos chegam até o cursinho com um déficit muito grande em relação ao que devem aprender para ingressar na universidade, via vestibular. A experiência mostra que, muitas vezes, é necessário mais de um ano para que um aluno de um cursinho popular consiga ser aprovado no vestibular, podendo, se não trabalhado devidamente, ser deletério para a já fragilizada auto-estima dos alunos. Por outro lado, nos permite construir laços mais consistentes por meio da troca de informações e vivências, pois acima do vestibular está a vida em si, por isso buscamos trabalhar no cursinho com os princípios da educação popular e libertadora.



O desafio da Educação Popular no cursinho popular


Educação popular não é aquela que transmite o que a educação do sistema lhe pede, mas aquela que vive de mãos dadas com o povo, envolvida e comprometida com suas preocupações, seus problemas (BRANDÃO apud MONTEIRO, 1996, p. 66).


Conforme foi tratado em outro trabalho de pesquisa (BONETTO et all, 2007), os cursinhos populares não apenas trabalham com os conteúdos do vestibular, mas procuram associar estes conteúdos às experiências cotidianas de seus alunos, adotando princípios de educação popular, inclusive para enfrentar problemas como a alta evasão de alunos. Este “duplo movimento” (PEREIRA, 2007) buscado pelos cursinhos populares é algo complexo e exige compromisso político e qualificação técnica de seus professores.

Educação popular pode ser definida, a partir de Paulo Freire, como um movimento de engajamento daqueles que pretendem impulsionar modificações nas atuais estruturas de ensino do país. Nadando contra a maré, a educação popular se constitui como um contraponto ao regime de elite do ensino, em todos os seus âmbitos. Ela ambiciona desenvolver perspectivas para conscientizar todos os indivíduos que se encontram fora do status regular de ensino, com o intuito de proporcionar uma movimentação, um deslocamento das plataformas que mantêm a tradição de privilégio deste.

Nesse sentido, convergimos no entendimento de que

em síntese, para Freire, a expressão educação popular designa a educação feita com o povo, com os oprimidos ou com as classes populares, a partir de uma determinada concepção de educação: a educação Libertadora [...]. Esta educação, orientada para a transformação da sociedade, exige que se parta do contexto concreto/vivido para se chegar ao contexto teórico, o que se requer a curiosidade, o diálogo, a vivência da práxis e o protagonismo dos sujeitos (PALUDO, 2008, p. 158-9).


Os cursinhos populares, ao nadar contra a maré, revertem este processo de privilégios. Tais espaços educacionais vão atuar em localidades ditas populares, pois estas sofrem com a deficiência do ensino público e também são periferizadas por todo um constructo social que as afasta, geográfica e socialmente, já que não as considera capazes de pertencer a este corpus de nível elevado que é a sociedade “normal”. Discordando deste raciocínio, os cursinhos populares percebem que é necessário desconstruir esta lógica para mostrar aos “excluídos” que, com trabalho, conscientização e uma perspectiva emancipatória, pode-se reverter o quadro. Mas, quais seriam os obstáculos impostos por este status quo do ensino/sociedade normal para afastar os ditos incapacitados?

O próprio afastamento social já é um deles. A lógica meritocrática (ARANDA et all, 2006), que apresenta somente os melhores como os escolhidos para prosseguir nesta sociedade ideal, não leva em conta que estes “melhores” só alcançam seus méritos pelo acesso a recursos e possibilidades que os “piores” não têm. Lembrando que estes obstáculos também se encontram no interior do indivíduo excluído, já que o mesmo, se questionado, irá corroborar a teoria de que, somente aqueles que são “bons”, têm acesso aos melhores salários, aos melhores empregos. Este raciocínio, como já foi expresso, precisa ser revisto e modificado, tendo em vista que, estes recursos e possibilidades foram garantidos mais para alguns e menos para outros, em virtude de um processo histórico-social que construiu uma divisão destas possibilidades, relegando grande parte do bolo a uma minoria privilegiada.

Por conseguinte, os cursinhos populares e os agentes que os constroem e dão vida, estabelecem linhas de trabalho para que se possa eliminar esta lógica de inferiorização e proporcionar, por meio das vias do conhecimento e da conscientização, maneiras para se desprender desta perspectiva de hierarquização social.

Este processo será perpassado, primeiramente, apoiado em algumas das palavras de Paulo Freire, pela adoção de uma perspectiva crítica e emancipatória da educação, o que, num momento inicial será assimilado pelos professores, e gradativamente, pelos alunos, pois que, todo este movimento irá se calcar numa relação dialética entre professor e aluno, um ensinando, aprende e o outro, aprendendo, ensina. Enfim, não há docência sem discência, pois só poderemos ensinar aquilo que aprendemos (FREIRE, 1996).

Dessa forma, sabemos que o espaço popular se faz com o auxílio de muitas mãos. Mas, então, como formar-se educador popular? Quais os requisitos para desempenhar com êxito tal função?

Jean Piaget e Henri Wallon admitem, contrários a alguns filósofos clássicos (Platão, Descartes, Kant), que a docência precisa unir harmoniosamente razão e emoção, visto que o ser humano é composto desses dois elementos. Assim, “não existe conhecimento puramente afetivo ou puramente cognitivo. Quem produz conhecimento é um ser humano, um ser de racionalidade e de afetividade” (GADOTTI, 2007, p. 57).

Sendo o afetivo e o cognitivo inseparáveis, o educador do cursinho popular deve se dispor a compreender a realidade na qual estão inseridos os educandos, escrevendo sua prática de modo a aliar o conhecimento racional à amorosidade necessária. Do mesmo modo, ele não pode ser intocável, inacessível; precisa estar disposto a se relacionar, a adentrar no universo de seus alunos, a perceber suas necessidades e expectativas – as quais possivelmente os diferenciam de outros grupos de pré-universitários advindos de classes não populares.

Importante também que o educador não adote perante o grupo uma postura “paternalista”, visto que essa atitude é autoritária e vai contra a autonomia individual do cidadão. Frente às dificuldades encontradas, e aos limites claramente existentes na educação, temos em mente que, “não podendo tudo, a prática educativa pode alguma coisa” (FREIRE apud GADOTTI, 2007, p. 34). Seguindo o pensamento de Gadotti, a educação conscientizadora é crítica e prioriza o diálogo, o respeito e o amor, a criação e a recriação, a partir das situações-problema retiradas da realidade do educando.

Com base nessa discussão, passaremos a refletir acerca das experiências da prática pedagógica no cursinho, buscando possíveis respostas às inquietações cotidianas.



Experiências em sala de aula: entre o vivido e o pensado


Os fragmentos tirados do diário de campo dão lugar, nesses ensaios, a enredos e encenações montados explicitamente para dialogar com idéias existentes – tanto no senso comum quanto na comunidade científica [...] (FONSECA, 2004, p. 7).



O movimento de nos pensarmos como educadores do cursinho popular encontra nos diários de campo um espaço privilegiado de sistematização e de tomada de consciência das lacunas e desafios que o nosso trabalho em sala de aula apresenta. Por isso, os relatos acompanham nosso fazer docente, resultado direto do planejamento e execução das aulas.

Esse movimento entre o vivido e o pensado, entre a experiência e seu relato, entre o planejado e o executado, nos remete à práxis, onde teoria e prática estão em relação sinérgica. Fora desse movimento, poderíamos formular “hipóteses de gabinete” ou nos perdermos na materialidade da prática não refletida. Nesse sentido, “a reflexão crítica sobre a prática se torna uma exigência da relação Teoria/Prática sem a qual a teoria pode ir virando blábláblá e a prática, ativismo” (FREIRE, 1996, p. 22).

Cada educador ficou incumbido de registrar suas aulas, tentando mostrar toda a realidade de acertos e erros que formam o seu universo docente. Nossa idéia seria fomentar dois momentos: um particular, onde o professor reflexivo se encontra consigo no tensionamento de sua prática com seus pressupostos epistemológicos e didáticos, e um coletivo, no qual as experiências seriam socializadas no grupo de pesquisa, objetivando a troca de idéias e o crescimento conjunto de um “espírito” de trabalho.

Dessa forma, a partir de constante diálogo acerca do desafio de ser educador, ainda aluno universitário, percebemos que cada experiência é única em seus significados e descobertas, uma vez que nossas caminhadas na vida e na academia são diferentes e que


a docência é uma atividade baseada em perguntas. Por isso não é uma atividade rotineira. Cada dia é uma surpresa. Cada dia o ser humano é diferente. Não entramos duas vezes na mesma classe, como diria Heráclito (GADOTTI, 2007, p.55).



Contudo, alguns aspectos parecem indicar que não estamos sozinhos em nossas angústias, pois falamos de um lugar comum: somos estudantes de origem popular e educadores do cursinho popular da Restinga.

A partir dessas aproximações, ensaiamos a criação de duas categorias básicas para a nossa análise: 1) o movimento permanente de planejamento das aulas e 2) a questão da heterogeneidade (relação da parte com o todo) da turma de alunos. O pano de fundo das experiências relatadas se constitui de duas partes: o ambiente do estudante de origem popular (bolsista) na universidade e a realidade da Restinga.

Em relação ao planejamento das aulas, consideramos que nessa categoria alguns aspectos estão presentes, podendo ser resumidos em três: a) conhecimentos técnicos de cada área, pois, conforme já assinalado, só poderemos ensinar aquilo que sabemos, b) orientação pedagógica e didática – estratégias de aula/metodologia de ensino e c) consideração da realidade (sócio-econômica e afetiva) dos alunos, ou seja, o desafio de construirmos aulas dotadas de sentido.

Diante do silêncio profundo que paira no ar, durante grande parte das explicações dadas, resta-nos a dúvida sobre o que realmente os educandos estão absorvendo. Mesmo quando são incitados a refletir sobre o processo de escrita em suas vidas, parecem não ter uma reação muito diferente, talvez por que não pratiquem regularmente tal processo e/ou simplesmente não o reconheçam como importante parta suas vidas. Este episódio (dentre outros) nos faz (re)pensar nosso planejamento (tendo que adaptá-lo à realidade encontrada), assim como faz perceber o abismo existente entre teoria e prática.

Mas como mudar a pratica sem mudar a teoria? Não esqueçamos que apesar de ser popular, este ainda é um curso pré-vestibular e, portanto, não pode, nem deve, deixar de priorizar a imensa lista dos conteúdos programados. O problema maior é que, um cursinho (mercadológico), tem a tarefa de apenas rever os conteúdos (teoricamente já estudados/vistos nos bancos escolares); enquanto no nosso, ao nos depararmos com o tamanho de defasagem apresentada, não há como “tocar a matéria”, temos de re-ensinar o que já deveria ter sido aprendido, mas não fora, fazendo ainda uma seleção de conteúdos “mais importantes” (cobrados no vestibular), já que o tempo (ou a falta dele) não nos permitirá trabalhar todos.

Para manter seu propósito de ensinar determinado conteúdo, o professor deve trocar de estratégias de aula muitas vezes, por exemplo, sabendo que a matemática é o “bicho papão” para a maioria dos estudantes, podemos/devemos fazer certas “brincadeirinhas” e comparações com o cotidiano para tornar a aula mais rica e envolver mais alunos nas atividades.

Entendendo que o papel do educador popular também é ser “psicólogo particular”, buscando entender o contexto em que está inserido cada aluno e a turma como um todo, ao fazer isto, pode-se sair de cada aula com a sensação do dever cumprido, de mais uma aula dada e mais mentes que se abrem para nova idéias e entusiasmos, não só pela proximidade do vestibular e de uma possível aprovação, que é a meta maior de nossas aulas, mas para a vida.

Embora o educador faça um plano de aula “rendondinho”, que a seu ver seria “infalível” (claro, se os educandos “cumprirem a sua parte”, fazendo os exercícios propostos na aula e também em casa), e execução pode nos colocar diante do fato de eles não cumprirem este “acordo”. Aprendemos que isso não deve desmotivar o professor, mas, ao contrário, deve fazê-lo refletir sobre sua prática e adaptá-la ao grupo de alunos.

Outro efeito causado pelo silêncio dos alunos é que assim o professor transforma-se no centro da atenção deles e talvez isso sugira “poder”, mas não o poder de doutriná-los, nem de direcioná-los a um caminho ou outro, sem discussão. Mas, como a educação implica também em posicionamento (tanto por parte dos alunos, como dos professores), deve o professor assumir responsabilidades por aquilo que está fazendo em sala de aula, mas no sentido de chamar os alunos a ocuparem um espaço de protagonistas no cursinho.

Antes de iniciar o trabalho com uma disciplina escolar - até para não causar um choque nos alunos, nem desmotivar o professor – é recomendado que se faça uma sondagem na turma (pode ser através de uma conversa informal, de um questionário, etc), a fim de verificar os conhecimentos prévios que eles possuem, para então traçar um plano de aula e estratégias. Senão, como avaliá-los? Se não soubermos o que eles já sabiam, como avaliaremos o que realmente aprenderam, ou melhor, o seu processo de aprendizagem?

Seguindo os princípios progressistas da educação popular, em que o educador não apenas transmite (deposita) os conteúdos nos cérebros (“vazios”) dos educandos, torna-se importante a construção conjunta do conhecimento. Neste processo, o educador tenta – a partir da valorização dos conhecimentos prévios dos educandos – instigar o raciocínio dos mesmos, de modo que cheguem “sozinhos” às conclusões pretendidas/esperadas pelo educador/orientador - ou a outras quaisquer, não previstas por ele. Então, quando ocorre esta última hipótese, fica provado que o conhecimento não é algo fixo, pronto, nem imutável, mas que está sempre em construção, pois “se aprende ensinando e se ensina aprendendo”.

Salienta-se ainda que, neste processo de construção do conhecimento, é importante valorizar cada “pequeno acerto” do aluno, para que este incentivo lhe sirva de estímulo para seguir “pensando” e expondo seus pensamentos, elevando assim sua auto-estima, que via de regra, é bastante baixa. E, se ocorrer algum “erro”, não deve-se simplesmente apontá-lo, mas questionar o aluno sobre como chegou àquela conclusão, e a partir daí, tentar mostrar-lhe raciocínio correto do ponto de vista teórico/conceitual.

A questão da heterogeneidade, por suas vez, indica o nosso desafio de trabalharmos com um grupo de alunos com históricos escolares diferentes e, portanto, com tempos e exigências diferenciadas.

Quantas vezes planejamos felizes nossas aulas e, chegando em sala de aula, percebemos que não podemos seguir esse plano, por que os alunos não têm nenhuma base sobre determinado conteúdo escolar, ou simplesmente pelo fato de eles não terem revisado e estudado a aula anterior. Essa falta de conteúdo, de tempo e muitas vezes de interesse influencia cada aula preparada, mas no meio de tudo isso nunca podemos esquecer que o objetivo deles é passar no vestibular.

Todos nós temos uma vida particular, temos nossos medos, nossos anseios e nossas fraquezas, mas no momento em que se trabalha com muitas pessoas ao mesmo tempo, essas diferenças afloram e cabe a ele, o professor, criar bases de apoio e entrar no mundo de seus alunos e com isso sempre tentar trazê-los para o mundo “cursinho”, para a sala de aula, para o vestibular, que mesmo não sendo como queríamos, é o motivo de estarmos todos ali, assim como cabe a ele entusiasmar seus alunos a ponto de os fazerem esquecer o cansaço de um dia todo de trabalho e o filho que, muitas vezes, esta em casa o esperando.

Diante disso cabe também ao professor, trazer propostas de ensino que se aproxime do meio em que eles vivem, não sendo “paternal”, passando a mão na cabeça deles por não fazerem uma tarefa pedida, mas tentar entender essas “carinhas assustadas e de pavor” diante do assunto trabalhado. Sabemos que, muitas vezes, fica difícil saber o que estão pensando, onde estão as dúvidas que se acumulam para quem é mais retraído e não se expõe em sala de aula, talvez por medo de ser ridicularizado ou medo de confessar não saber. Ao mesmo tempo, o rendimento da turma vai se formando ao longo dos nossos encontros, onde trabalhamos no sentido da criação de um espírito de solidariedade, onde todos e todas possam construir uma rede de apoio mútuo.

A partir dessa heterogeneidade, o professor deve tentar apresentar o conteúdo de modo que tantos os alunos mais participativos quanto os menos entendam o conteúdo planejado. É muito comum acontecer dos alunos mais novos absorverem o conteúdo mais rapidamente, por isso é preciso ter paciência e tentar fazer com que toda a turma tenha o mesmo ritmo de aprendizagem. Assim como é esperado que os alunos mais velhos disponham de menos tempo para estudar em casa, em relação aos mais novos sustentados pelos pais e que podem apenas estudar.

Em geral, os alunos que estavam há muito tempo sem estudar, já perderam o hábito de dedicar um tempo durante a semana para o estudo, pois isso exige disciplina e concentração. Às vezes acham que somente irem à aula é suficiente para se prepararem para o vestibular, e é por isso que devemos trabalhar com a parte psicológica da cultura e do hábito do estudo. É importante tentar fazer com que eles reservem um tempo para o estudo em meio as suas tantas tarefas e responsabilidades, para que possam acompanhar o andamento do curso de modo operacional, ou seja, fazendo os trabalhos pedidos pelos professores, as listas de exercícios, as leituras, etc.

Dessa maneira, os professores do cursinho, buscam sanar ao menos uma parte dessa carência, tanto psicológica quanto pedagógica, com aulas que buscam proporcionar, por meio de metodologias diferenciadas, esperança a seus alunos e mostrar que para entrar na faculdade, para passar no vestibular, é preciso muito esforço e rotina de estudos. Falamos isso de um lugar (universidade) que batalhamos muito para estar e que queremos muito a companhia de pessoas como eles/nós.


Considerações Finais


Assim como Paulo Freire, entendemos que a educação de caráter popular não pode ser realizada para o povo, mas sim com o povo. Por isto, o processo de ensinar e aprender é um tarefa complexa, principalmente quando nos referimos às camadas desfavorecidas historicamente. No caso de um ensino tendo em vista a preparação para o vestibular, este aspecto se mostra concretamente, pois o caráter elitista da seleção para um ensino superior público e de qualidade poderia impedir que este tipo de educação fosse viável.

Mas não viemos até aqui para desistir agora. A tarefa se torna motivante quando temos em vista o objetivo referido acima somado a uma educação que faça algum sentido na realidade destas pessoas. Alguns passos podem ser dados sem medo, visto que o próprio caráter do processo de aprendizagem é inacabado.

Vimos que a relação entre ensino e pesquisa realizada pelo próprio docente tendo em vista a melhoria da sua prática é um ponto importante na construção de uma proposta pedagógica emancipatória. As concepções de educação popular podem ser melhor apreendidas por nós, professores iniciantes e também alunos, através destas reflexões sobre os acontecimento em sala de aula. A busca por um ensino que esteja lado a lado com as dúvidas e anseios destes alunos faz com que as nossas próprias dúvidas e anseios venham à tona e se tornem objetos de reflexão.

No caso das nossas discussões sobre a prática em sala de aula, vimos as questões que se tornaram mais freqüentes entre os professores: a heterogeneidade dos alunos e o planejamento em constante revisão. Estes dois aspectos, que não se excluem e carregam outras questões implícitas, nos mostraram o quanto as aulas em um cursinho pré-vestibular popular podem ser carregadas de problematizações e possibilidades de melhorias. Tendo em vista isso, o significado das nossas ações no Esperança Popular Restinga podem ser entendidas como uma constante caminhada, o que não faz dos erros uma tragédia, mas sim desafios que impulsionam a continuidade deste trabalho.

Assim, o que poderia ser um peso se torna movimento. O que poderia ser medo se torna esperança. Aprendemos a dividir estes anseios e a aprender mais. Não é este o objetivo da educação popular? O diálogo e a troca. Nada mal, aprendemos com eles e aprendemos conosco.



Referências


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SILVA, J. S. “Por Que Uns e Não Outros?”: caminhada de jovens pobres para a universidade. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2003.

1 Professora de Português/Espanhol do Curso Pré-Vestibular Esperança Popular Restinga, estudante de Letras (UFRGS) e Bolsista do Conexões de Saberes/UFRGS.

2 Professora de Biologia do Curso Pré-Vestibular Esperança Popular Restinga, estudante de Medicina Veterinária (UFRGS) e Bolsista do Conexões de Saberes/UFRGS.

3 Professor de História do Curso Pré-Vestibular Esperança Popular Restinga, estudante de História (UFRGS) e Bolsista do Conexões de Saberes/UFRGS.

4 Professora de Matemática do Curso Pré-Vestibular Esperança Popular Restinga, estudante de Matemática (UFRGS) e Bolsista do Conexões de Saberes/UFRGS.

5 Professora de Matemática do Curso Pré-Vestibular Esperança Popular Restinga, estudante de Matemática (UFRGS) e Bolsista do Conexões de Saberes/UFRGS.

6 Professor de Física do Curso Pré-Vestibular Esperança Popular Restinga, estudante de Física (UFRGS) e Bolsista do Conexões de Saberes/UFRGS.

7 Professor de Redação/Inglês do Curso Pré-Vestibular Esperança Popular Restinga, estudante de Letras (UFRGS) e Bolsista do Conexões de Saberes/UFRGS.

8 Sociólogo, Mestre em Educação (PPGEdu/UFRGS) e Orientador do Território Curso Pré-Vestibular Esperança Popular Restinga junto ao Conexões de Saberes/UFRGS.

9 Segundo dados do INEP (2007), cerca de 12% dos jovens entre 18 e 24 anos chega ao ensino superior no Brasil, número que varia entre as regiões do país.

10 As palavras Professor/Educador e Aluno/Educando são utilizadas neste texto com o mesmo sentido.

11 Destacamos a presença de Helena Bonetto, ex-bolsista do Conexões de Saberes – UFRGS e Professora de Sociologia do cursinho, na construção deste texto e na organização e manutenção do Esperança Popular Restinga.

12 O bairro Restinga é muito conhecido em Porto Alegre pela sua grande distância em relação ao centro da cidade e como um “bairro violento”, proveniente das estatísticas policiais, mas, sobretudo, de grande preconceito. Muitos projetos sociais atuam no bairro, seja por meio da extensão universitária, ONGs ou ainda atividades desenvolvidas pelos próprios moradores, como o Comitê de Resistência Popular.

13 Ser morador do bairro, ter estudado em escola pública e ter renda per capta de até um salário mínimo nacional.

14 Caracterização pejorativa relacionada aos moradores da Restinga.